O casamento, como comunhão de vida, é composto por uma vertente pessoal e uma vertente patrimonial.
Pela componente pessoal, a comunhão de vida concretiza-se pela recíproca vinculação aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. Esta é a essência do casamento.
Mas existe também a componente patrimonial da comunhão. É essa comunhão patrimonial - a sua existência ou inexistência - que poderá determinar a possibilidade de administração dos bens comuns e, em circunstâncias excepcionais, dos bens próprios do outro, e um regime de solidariedade pelas dívidas comuns do casal.
Vejamos mais de perto todas estas circunstâncias.
Bens próprios e bens comuns
O amor é inerente à condição humana. Já o casamento por amor, como pressuposto da união conjugal, tal como hoje o concebemos, é uma novidade na história já antiga do matrimónio. Recente, em termos históricos, é também a liberdade de cada um poder dispor livremente e em igualdade de circunstâncias de si e do seu património. O Código Civil Português, nos seus 2.334 artigos, omite a palavra “amor”, mas regula de forma exaustiva o regime de bens dos cônjuges. São três os regimes possível de bens no casamento:
- O regime da separação de bens: é regime que procura sobretudo evitar equívocos entre os cônjuges e que em algumas circunstâncias ou para alguns é um regime obrigatório. Estão nesta última situação daqueles que se casam como mais de 60 anos de idade ou, em determinadas circunstâncias, os sobreendividados;
- O regime da comunhão geral de bens: é o regime oposto ao regime da separação de bens. Neste regime, tudo, ou quase tudo, passa a constituir propriedade de ambos;
- O regime da comunhão de adquiridos: é o regime jurídico em que são comuns os bens adquiridos depois do casamento e são próprios, os bens que cada um leva para o casamento. Uma vez que é o único regime de bens que não pressupõe a ida prévia a um cartório notarial a fim de celebrar uma convenção antenupcial acaba por ser actualmente o regime de bens da generalidade dos casais.
No orçamento familiar, como no orçamento de uma empresa, o valor do ativo comum é aumentado com o valor da receita e é diminuído com o valor da despesa. O saldo resulta positivo quando o valor da receita é superior ao valor da despesa e negativo quando ocorre o inverso.
Mas a realidade é complexa, rica e variada. A despesa pode na verdade representar investimento e a receita pode, sem surpresa, revelar-se uma fonte de despesas. De um modo ou de outro, a despesa é sempre problemática.
Neste tema das despesas, quando à autoria, as despesas podem ser efetuadas por apenas um dos cônjuges ou por ambos e, independentemente disso, beneficiar ou prejudicar um ou ambos. Existem pois duas questões que o direito tem que dar resposta: a primeira é a de saber o que se consideram dívidas comuns; a segunda, se, pelo cumprimento dessas obrigações, responde o património comum ou o património próprio.
Dívidas comuns e regime da solidariedade
As despesas contraídas por ambos não oferecem problemas, são comuns.
Mas consideram-se comuns também as despesas contraídas por um só, independentemente de terem sido consentidas pelo outro, sempre que esteja em causa qualquer uma das seguintes situações:
- sirvam para dar cobertura aos encargos normais da vida familiar (alimentação, vestuário, saúde ou farmácia);
- aproveitem ao casal, desde que nos limites dos poderes de administração (viagens ou festas);
- sejam realizadas no exercício do comércio;
- onerem doações, heranças ou legados quando os respetivos bens tenham ingressado no património comum ou;
- onerem bens comuns.
Para essas dívidas consideradas comuns vigora o regime da solidariedade. Isso quer dizer que respondem, em primeiro lugar, os bens comuns do casal devedor e, em segundo lugar, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. Mas atenção: em regra, o bem comum não se presume! Uma dívida, ainda que contraída por um só e em proveito comum do casal (administração ordinária), responsabilizará ambos os cônjuges apenas se o credor conseguir alegar e provar o proveito comum do casal.
Dívidas próprias
A lei considera dívidas próprias as que tenham origem em factos criminosos, factos imputáveis a um dos cônjuges (indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas) e as que onerem bens próprios.
Nas dívidas próprias ou não comunicáveis, a solidariedade funciona ao contrário: primeiro, respondem os bens próprios daquele que as produziu e, depois, os bens comuns do casal, a menos que este último requeira a separação judicial de bens.
Penhora dos bens comuns do casal
Quando não há pagamento voluntário das dívidas, comuns ou próprias, a garantia do credor concretiza-se com a penhora dos bens do devedor.
Até 1995, o credor dificilmente conseguiria executar os bens comuns do casal porque o legislador privilegiava o interesse da família sobre o interesse do credor, que via assim os seus créditos frustrados. O casamento funcionava assim como um abrigo seguro contra os credores. Mas esta realidade foi alterada em 1995.
Após 1995, passou a ser possível que os bens comuns respondessem, a título principal, pela dívida de ambos ou, a título subsidiário, pela dívida própria de um dos cônjuges.
É claro que fazer pagar o cônjuge inocente pela dívida própria do outro cônjuge é violento. Então, para evitar esta injustiça penalizadora, ficou previsto que a solidariedade pudesse ser relativizada nos seus efeitos. Ou seja, sendo penhorados os bens comuns, o cônjuge “inocente” tem a possibilidade de se defender, requerendo a separação judicial dos bens. Passa a responder então pela dívida apenas a parte (meação) no património comum daquele que a originou. Na prática, a separação de bens faz operar uma partilha de bens que altera o regime da comunhão para o da separação. Acionado este mecanismo de defesa, o credor só se poderá pagar pelos bens (da meação) adjudicados ao cônjuge devedor.
Convém esclarecer que a separação judicial de bens não tem o mesmo significado que o divórcio (separação de pessoas e bens). Contrariamente ao que acontece no divórcio, na separação judicial de bens os cônjuges continuam a comungar de todos os direitos e deveres inerentes ao casamento.
Dinâmica social e dicotomia bens próprios/bens comuns
Esta guerrilha entre bens próprios/bens comuns, tem vindo a ganhar interesse crescente. As mesmas regras talvez já não façam muito sentido na nossa realidade. Hoje, nas democracias ocidentais, as pessoas casam cada vez mais tarde, dando-se tempo para arrumarem profissionalmente a sua carreira. Os cônjuges conquistaram um estatuto de igualdade e autonomia sem qualquer tipo de paralelismo no passado, levando ambos cada vez mais bens próprios para o casamento. Mantendo-se como regime regra de bens o regime de comunhão de adquiridos, o património próprio supera e cruza-se frequentemente com o património comum.
Há quarenta anos atrás não era assim. As pessoas casavam jovens e, em regra, construíam o seu património dentro e depois do casamento. Nós vivemos hoje uma realidade social diferente, o que cria a necessidade de novas soluções jurídicas. Assim, da mesma forma que no passado houve a transição do regime da comunhão geral para a comunhão de adquiridos, fará hoje sentido passar a ter como regime regra o regime da separação de bens em vez do regime da comunhão de adquiridos.